9.3.08

Coisas de fazerem tremer a gente!



A propósito do texto da Sara e porque estamos quase na Primavera, ocorreu-me partilhar convosco um dos poemas, da pouca poesia que conheço, que descreve o amor da forma mais bela. Como sabem, sou mais conceptual do que lírico, mas este poema consegue articular o lirismo à conceptualidade de uma forma perfeita. Ora sintam-no pensando-o:


O que é o amor
o ser que se perde no ser
na primavera da matéria eterna?
Acontecimento absoluto sempre no início
substância de velados fulgores
qual a grafia que segue as suas volutas
ou espelha o firmamento de uma morada?
Metamorfose do espaço sob delicadas arcadas
conhecimento gracioso de deslumbrantes delicadezas
o peito arqueia-se pleno de conhecimento e de graça
entrega-se ao sortilégio da subtil e sumptuosa energia
que irradia do permanente jardim das presenças voluptuosas
Tudo é voluptuosamente novo para os amantes
que vivem no início do mundo e sem o saber amam o deus inicial
Ó língua humana ó lingua deste livro
como poderás dizer a plenitude desse conhecimento espontâneo
se tu não és de lava nem de cristal
e não tens o líquido encanto da música
nem és profunda amante vida como a carne entregue ao gozo
absoluto
de uma dupla Fénix que ofusca a palavra e a liberta do silêncio
deslumbrado?
António Ramos Rosa (n. 1924), Génese

7 comentários:

Soledade disse...

Ramos Rosa, poeta das palavras deslumbradas nem sempre é fácil. Talvez possam entrar aos pouquinhos no poema, saboreando alguns versos de cada vez. Olhem que bonito:

«Tudo é voluptuosamente novo para os amantes / que vivem no início do mundo (...)"

Então?:)

Anónimo disse...

Gostei muito stôr. Confesso que houve alguns versos que não entendi especialmente bem. Mas os que estenderam deslumbram qualquer pessoa.
Não conhecia o autor. Mas fiquei curiosa! :)
Um beijinho.

Valter disse...

Olá Soledade e Sofia!
Soledade, creio que se trata de um bom verso para discutir. O que me seduz neste poema, que já me levou a lê-lo tantas vezes, é essa pureza, esse regresso à infância, ao início, ao espanto original, através da consciência amorosa (cá entre nós, faz-me lembrar Barthes!).

Sofia, Ramos Rosa é um poeta-profeta, por isso, tem uma escrita muito conceptual (que eu aprecio), embora haja poemas dele de uma clareza luminosa. Os seus poemas cheiram a Sol, mar, Algarve, natureza, corpo, volúpia; todos os seus poemas são um hino à matéria, ao "humus", à terra. Depois trata-se de um dos grandes poetas vivos portugueses. Aliás, cheguei a combinar com um colega, irmos até Tavira, de café em café, a ver se o encontrávamos. Ele tem uma presença mística, repara na foto e no seu rosto sulcado pela vida e pela palavra. Depois ele é o poeta do silêncio. Pode parecer paradoxal, mas não é... falar do silêncio é das tarefas mais complexas, porque no silêncio está um eterno retorno, o regresso ao útero da terra, está a própria máquina do existir. Como poeta e tradutor, tornou-se, nos anos 50 e 60, uma presença literária muito forte. Contudo, hoje, vive refugiado nos seus livros, no fumo do tabaco e no mar algarvio!

Beijos

Anónimo disse...

Em relação à foto stôr, o poeta parece-me tanto o Einstein! Não sei se pelo seu ar lunático ou diferente, se pelo ar de experiência que expressa a fotografia. Á primeira vista pareceu-me mesmo o cientista louco. Talvez pela diferença.
Beijinho.

Miguel Ângelo disse...

Meu caro blogger, gostei de ter passado por aqui. A blogosfera é o meu vício. Bom fim-de-semana.

Valter disse...

Obrigado Miguel pela sua visita! Contudo, ainda aguardo uma resposta em relação ao outro tema num outro blogue... :)

Um abraço e bom fim de semana

Soledade disse...

Não tenho uma relação preferencial com Ramos Rosa, Valter. Não é um dos meus poetas. Não está em causa a sua qualidade (podemos admirar sem amar, em se tratando de arte). Nem tão pouco o facto de ser ou não conceptual. De resto, desde o experimentalismo, do concretismo ou do surrealismo até hoje, Ramos Rosa percorreu um caminho complexo que o aproximou do discursivo - ou do sintáctico, como agora se diz. Mas prefiro-lhe poetas que considero mais seminais. Por exemplo esse gigante misantropo que é Herberto Helder; ou a voz mais doce, luminosa e sensual que o século xx conheceu: Eugénio de Andrade. Contudo, "Clareiras", um livrinho de prosa poética que Ramos Rosa publicou nos anos 80, é uma das minhas pequenas "bíblias". Quanto a conhecê-lo pessoalmente, não é difícil - é uma homem extremamente afável e acessível que, e apesar da idade, participa com alguma frequência em tertúlias lá no seu extremo sul.
É bom expormos os nossos jovens a diversos e exigentes chamamentos.
Até amanhã :)